O fato de o sacerdote,
frequentemente, celebrar o sacramento da Eucaristia de frente para os
fiéis é uma das mudanças mais marcantes que afetaram a liturgia católica nas
últimas décadas. Essa mudança foi acompanhada pela utilização de altares
isolados que, muitas vezes, acarretaram transformações tão radicais quanto
discutíveis em igrejas marcadas pelo passado histórico. A impressão que se
instalou - não só na opinião pública, mas também no interior da Igreja – foi a
de que a posição “versus populum” do celebrante na Missa era uma obrigação
prescrita pela reforma da liturgia introduzida pelo Concílio Vaticano II. No
entanto, a leitura dos documentos conciliares e pós-conciliares demonstra que
não é exatamente assim.
Na Constituição Conciliar sobre a Sagrada
Liturgia (Sacrosanctum Concilium), não se põe em discussão a celebração “versus
populum” nem a construção de novos altares. As normas litúrgicas atualmente em
vigor consideram desejável que o altar-mor de uma igreja seja afastado certa
distância da parede para permitir que, ao redor dele, se dê uma volta e para
que uma celebração de frente para o povo seja possível. Contudo, em nenhum
caso, afirma-se que a orientação do sacerdote de frente para o povo deva ser
considerada, sempre e por todos, como a melhor forma de celebrar a Missa.
Muitas pessoas, desde os anos sessenta, expressaram uma opinião crítica acerca
da expansão do modo versus populum de celebrar a liturgia. Ao lado do
liturgista de Innsbruck, o jesuíta Josef Andrea Jungmann, e do oratoriano
francês Louis Bouyer, pode-se mencionar Joseph Ratzinger - que era então um
jovem teólogo que participou do Concílio e que, posteriormente, veio a
tornar-se o Papa Bento XVI.[1]
A orientação do celebrante de frente
para o povo durante toda a cerimônia eucarística, na realidade, jamais foi
oficialmente prescrita e nem mesmo introduzida pela reforma litúrgica. Em
geral, os argumentos tirados da história da liturgia e invocados em favor da
posição “versus populum” são referências à presumida prática
litúrgica da Igreja dos primeiros séculos. Os argumentos propriamente
teológicos, por sua vez, são derivados da noção de participatio actuosa, a
"participação ativa" dos fiéis na liturgia, que havia sido
apresentada pelo Papa São Pio X e, posteriormente, colocada no centro da
Constituição Sacrosanctum Concilium.
Nos últimos anos, contudo, uma nova abordagem
crítica surgiu. Ela exige um aprofundamento teológico deste importante conceito
em face da interpretação que foi dada no período seguinte ao Concílio.
Discute-se se o fato de fiéis e sacerdote estarem permanentemente face a face
seja benéfico para uma verdadeira participação dos fiéis – tal como exigida
pelo Concílio Vaticano II. Em seu importante livro sobre o Espírito da
Liturgia, o Cardeal Ratzinger faz uma distinção fundamental entre a Liturgia da
Palavra e a Liturgia Eucarística em sentido estrito: “O papel secundário das
ações exteriores deveria ser claramente ressaltado. Aliás, quando vem o
essencial – a oratio – a ação deve desaparecer totalmente. Como também
deve evidenciar-se que, somente a oratio é o essencial, por ser só
ela que proporciona espaço para a actio de Deus. Quem
compreendeu isto, entenderá facilmente que agora não se trata de olhar o
sacerdote, nem de ver o que ele faz, mas sim olhar juntos o Senhor e
aproximar-se dele”.[2]
Nesse mesmo livro, o Cardeal Ratzinger também
destacou a natureza trinitária da liturgia: cada celebração da Eucaristia é uma
oração ao Pai, por Cristo, no Espírito Santo. Qual a melhor forma de exprimir
esse comportamento interior através dos gestos litúrgicos? Ora, quando falamos
com alguém, nós nos voltamos naturalmente para essa pessoa. Isto também se
aplica às cerimônias litúrgicas, o que implica que a oração do sacerdote e dos
fiéis deve ser orientada a seu divino destinatário.[3] As expressões
"de frente para o povo" ou "voltado para o povo",
correntemente empregadas, não levam em consideração Aquele a quem se dirigem a
prece e o sacrifício: o Senhor.
Quanto à dimensão histórica da questão,
devemos, em primeiro lugar, observar que, desde os primeiros tempos, os
cristãos se voltam para o leste, em direção ao sol nascente, para orar.
Considerava-se, tanto para a oração privada quanto para a celebração litúrgica,
que não se devia mais continuar a seguir o antigo costume judaico de rezar
voltado para a Jerusalém terrestre, mas que era necessário voltar-se para a
nova Jerusalém, a cidade celeste, que o Senhor ressuscitado construiu para
acolher os remidos quando retornar para julgar o mundo. O sol nascente foi
considerado pelos primeiros cristãos como uma expressão adequada da esperança
da parusia, do retorno de Cristo em sua glória. A orientação para o Oriente
tornou-se fundamental para a liturgia e para a construção das Igrejas durante
os séculos seguintes. Até o fim da Idade Média, as absides das igrejas e seus
altares deveriam ser orientados para o leste, onde isso, naturalmente, fosse
possível. Desta maneira, o simbolismo cósmico da Missa revestiu-se de uma forma
concreta.
Mesmo em lugares em que, provavelmente, foi
regra que o sacerdote ficasse de frente para o povo, acredita-se que, em
algumas igrejas dos primeiros séculos, cuja entrada era orientada para o leste,
em particular em Roma e no Norte da África – o contato visual [entre o
sacerdote e os fiéis] não existia, pelo menos durante a Oração Eucarística, uma
vez que todos oravam de braços erguidos e com olhar voltado para o céu. Na
Antiguidade e no início do período medieval seria estranho associar a
participação efetiva de todos na ação litúrgica ao fato de se poder observar as
ações do celebrante. Em todo caso, a celebração “versus populum”,
como atualmente se entende, eradesconhecida na Antiguidade cristã. O fato
de citarem como exemplo desta forma de celebrar a prática das basílicas romanas
– como a de São Pedro - e a orientação dessas igrejas, seria um anacronismo.[4]
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