A orientação do padre e da
comunidade para o leste, na liturgia eucarística, cujo uso já é atestado desde
o início da história, não é um mero acaso. Não se trata apenas da transmissão
de um hábito, mas de uma orientação consciente para Deus na oração, ligada
intimamente ao sacrifício eucarístico. Guiados pelo sacerdote, o povo de Deus,
em peregrinação, põe-se em oração diante do Senhor. A incontestável preferência
que se deu à orientação comum da oração reside nesse movimento coletivo de
oferta, através do qual se enfatiza a dimensão sacrifical da Eucaristia. Por
meio de Cristo, nós apresentamos uma oração e uma oferenda [ao Pai] e, à frente
da procissão pela qual se expressa aquele movimento de oferta (prosphora, oblatio)
está o sacerdote, que se volta com os fiéis em direção ao Senhor. A tese de uma
relação objetiva entre o caráter sacrifical da Eucaristia e a orientação comum
da oração certamente exigiria uma análise detalhada, mas é bastante plausível.
A experiência pastoral das últimas décadas mostra que esta relação existe: é
difícil contestar o fato de que a celebração “versus populum” está
acompanhada por um decréscimo acentuado da compreensão da Missa como oferta e
atualização do único sacrifício de Cristo. Isso não quer dizer que a orientação
da celebração seja a única causa dessa mudança. Mas entre os pioneiros do
movimento litúrgico do século XX, o principal motivo para a introdução da
celebração versus populum era tornar mais presente a compreensão, supostamente
esquecida, da Eucaristia como banquete sagrado. É fácil constatar que esta
dimensão tem sido sublinhada de forma unilateral, em detrimento da afirmação de
que a Eucaristia é "um sacrifício visível, tal como a natureza do homem o
exige".[5]Bouyer vê na oposição entre a compreensão da Eucaristia como
banquete e a compreensão da Eucaristia como sacrifício um dualismo
artificialmente fabricado, que parece absurdo aos olhos da tradição litúrgica [6].
A
catequese mistagógica, que é sem dúvida muito importante, não poderá recuperar
essa perda enquanto o caráter sacrifical da Missa não encontrar sua
correspondente expressão na forma litúrgica. Em outras palavras, todos os
discursos bem intencionados sobre o mistério da Eucaristia, o sacrifício de
Cristo e da Igreja, perdem-se no tempo quando as celebrações são acompanhadas
de sinais que os contradizem.
Como argumento a favor da celebração “versus
populum”, muitas vezes se diz que tal posição é importante para o diálogo entre
o sacerdote e a assembléia. Não se trata aqui de contestar o papel de tal
diálogo em certas partes da liturgia – que tem o seu lugar – mas de ressaltar
que o princípio que rege esse intercâmbio é o diálogo entre todo o povo
reunido, incluindo o sacerdote, com Deus. O liturgista francês Marcel Metzger
chegou, inclusive, a dizer que a celebração da Missa “versus populum” não
exprime a verdadeira forma da Igreja e do ofício litúrgico. O sacerdote não
celebra a Eucaristia para o povo, mas é toda a comunidade que celebra voltada
para Deus Pai, por Jesus Cristo, no Espírito Santo. Este diálogo entre Deus e
seu povo é valorizado de maneira notável quando o celebrante está voltado para
a abside.
Uma vez que os homens estão relacionados com
o espaço e o tempo, suas orações e louvores a Deus se realizam em locais
concretos e momentos específicos e "se encarnam", em certo sentido.
Para Metzger, a orientação comum na oração é a maior expressão desta
representação espacial de Deus [7]. O que é importante aqui não é a
orientação para um determinado lugar do céu, mas a explicação sensível da
verdadeira forma da Igreja através da orientação comum do sacerdote e dos fiéis
em direção Àquele a quem dirigem suas orações. Em resposta à banalização e à
dessacralização progressiva da vida litúrgica, todo esforço deve ser
empreendido para que se dê prioridade absoluta à contemplação e à adoração do
Senhor. Os sacerdotes são servidores humildes e discretos deste mistério - nem
mais, nem menos.
A orientação comum da oração na liturgia foi
de uso quase universal nas igrejas latinas até muito recentemente. Ela continua
a ser a regra nas Igrejas de tradição bizantina, siríaca, armênia, copta e
etíope. A tradição litúrgica e a prática atual de todas as igrejas
orientais não católicas e da maioria das igrejas orientais católicas conhecem a
orientação comum do sacerdote e da assembléia, pelo menos durante a anáfora. O
fato de se ter introduzido em algumas igrejas orientais católicas, sobretudo
nas da diáspora, a celebração de frente para o povo, deve-se às influências
ocidentais do período pós-conciliar. Isto representa para estas igrejas um
distanciamento de sua própria tradição, o que ocorre, por exemplo, entre os
maronitas e os siro-malabares. Há alguns anos, a congregação romana responsável
por este tema ressaltou de maneira muito clara que a celebração da
liturgia versus orientem é uma tradição viva, cheia de significado e que foi
transmitida desde os tempos mais antigos, bem assim que é importante
conservá-la [8].
A orientação comum de frente para Deus, que
implica que todos estejam voltados para o altar – quer a orientação para o
leste seja real ou não - é a posição mais adequada para celebrar a Eucaristia
em sentido estrito, especialmente, durante o Cânon. Somente durante as partes
da liturgia em forma de diálogo, durante a proclamação da Palavra e a
distribuição da comunhão, é que o sacerdote deveria voltar-se para o povo. Não
se trata de discutir aqui em detalhe como essa proposta poderia ser colocada em
prática de maneira concreta. No entanto, permanece a recomendação: o sacerdote
deve orar voltado para o altar, especialmente nas igrejas antigas onde um altar
principal, cuja importante qualidade estética, muitas vezes, é a característica
dominante de todo o espaço. Os suntuosos altares que se encontram nas igrejas
ocidentais da idade média e do barroco, bem assim as estruturas absidais do
primeiro século ainda preservadas nas igrejas bizantinas e orientais,
contribuem para honrar a Deus e fazê-lo presente de modo sacramental, aos olhos
dos cristãos reunidos para a oração e para o sacrifício da Missa, a obra da
redenção por Ele realizada. Isso porque o altar é, por assim dizer, uma
abertura no céu que, longe de fechar o espaço da igreja, permite a
entrada, na comunidade reunida, daquele que é o Oriente e, por sua vez, permite
a saída desta comunidade da prisão que é este mundo [9].
Notas:
1. J. Ratzinger, « Der
Katholizismus nach dem Konzil », Auf dein Wort hin. 81. Deutscher Katholikentag
vom 13. Juli bis 17. Juli 1966 in Bamberg, Verlag Bonifacius-Druckerei,
Paderborn, 1966, pp. 245-264 ; J. A. Jungmann, « Der neue Altar », Der
Seelsorger, n. 37, 1967, pp. 374-381 ; L. Bouyer, Liturgy and Architecture,
Notre-Dame, Indiana, 1967, trad. française : Architecture et liturgie, Cerf,
coll. « foi vivante », 1991.
2. L’Esprit de la
liturgie, « Participation active », Ad Solem, Genève, 2001, p. 139.
3. J. Ratzinger, Das
Fest des Glaubens. Versuche zur Theologie des Gottesdienstes, Johannes Verlag,
Einsiedeln, 1993, pp. 121-123.
4. Sur ce sujet, on
peut se référer aux travaux du liturgiste de Ratisbonne Klaus Gamber, même s’il
ne sont pas toujours fiables quant aux détails historiques. K. Gamber, Ritus
modernus. Gesammelte Aufsätze zur Liturgiereform, Pustet, Ratisbonne, 1972 ;
Liturgie und Kirchenbau. Studien zur Geschichte der Meßfeier und des
Gotteshauses in der Frühzeit, Pustet, Ratisbonne, 1976.
5. Concile de Trente,
22e session, « exposition de la doctrine touchant le Sacrifice de la messe »,
chapitre 1.
6. L. Bouyer, postface
à Klaus Gamber, Zum Herrn hin ! Fragen um Kirchenbau und Gebet nach Osten,
Pustet, Ratisbonne, 1994, p. 74.
7. M. Metzger, « La
place des liturges à l’autel », Revue des sciences religieuses, n. 45, 1971, p.
140.
8. Congregatio pro
Ecclesiis Orientalibus, Istruzione per l’applicazione delle prescrizioni
liturgiche del Codice dei Canoni delle Chiese Orientali « Il Padre
incomprensibile », Cité du Vatican, 1996, pp. 85-86 (n. 107).
9. L’Esprit de la
liturgie, « Le lieu sacré », pp. 59-60.
Sobre o autor: Pe. Uwe Michael
Lang. Sacerdote do Oratório de São Filipe Néri, autor do livro Turning towards
the Lord: orientation in liturgical prayer (2005) e Oficial da Congregação para
o Culto Divino e a Disciplina dos Sacramentos e Consultor do Ofício de
Celebrações Litúrgicas do Sumo Pontífice. Fonte: Revista Catholica n º 89 –
Publicado em 11 de fevereiro de 2010.
Tradução por Edilberto Alves
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