sexta-feira, 2 de setembro de 2011

O lugar do Sacerdote e do Altar na Liturgia Católica (Segunda Parte)


  A orientação do padre e da comunidade para o leste, na liturgia eucarística, cujo uso já é atestado desde o início da história, não é um mero acaso. Não se trata apenas da transmissão de um hábito, mas de uma orientação consciente para Deus na oração, ligada intimamente ao sacrifício eucarístico. Guiados pelo sacerdote, o povo de Deus, em peregrinação, põe-se em oração diante do Senhor. A incontestável preferência que se deu à orientação comum da oração reside nesse movimento coletivo de oferta, através do qual se enfatiza a dimensão sacrifical da Eucaristia. Por meio de Cristo, nós apresentamos uma oração e uma oferenda [ao Pai] e, à frente da procissão pela qual se expressa aquele movimento de oferta (prosphora, oblatio) está o sacerdote, que se volta com os fiéis em direção ao Senhor. A tese de uma relação objetiva entre o caráter sacrifical da Eucaristia e a orientação comum da oração certamente exigiria uma análise detalhada, mas é bastante plausível.
  A experiência pastoral das últimas décadas mostra que esta relação existe: é difícil contestar o fato de que a celebração “versus populum” está acompanhada por um decréscimo acentuado da compreensão da Missa como oferta e atualização do único sacrifício de Cristo. Isso não quer dizer que a orientação da celebração seja a única causa dessa mudança. Mas entre os pioneiros do movimento litúrgico do século XX, o principal motivo para a introdução da celebração versus populum era tornar mais presente a compreensão, supostamente esquecida, da Eucaristia como banquete sagrado. É fácil constatar que esta dimensão tem sido sublinhada de forma unilateral, em detrimento da afirmação de que a Eucaristia é "um sacrifício visível, tal como a natureza do homem o exige".[5]Bouyer vê na oposição entre a compreensão da Eucaristia como banquete e a compreensão da Eucaristia como sacrifício um dualismo artificialmente fabricado, que parece absurdo aos olhos da tradição litúrgica [6].
  A catequese mistagógica, que é sem dúvida muito importante, não poderá recuperar essa perda enquanto o caráter sacrifical da Missa não encontrar sua correspondente expressão na forma litúrgica. Em outras palavras, todos os discursos bem intencionados sobre o mistério da Eucaristia, o sacrifício de Cristo e da Igreja, perdem-se no tempo quando as celebrações são acompanhadas de sinais que os contradizem.
  Como argumento a favor da celebração “versus populum”, muitas vezes se diz que tal posição é importante para o diálogo entre o sacerdote e a assembléia. Não se trata aqui de contestar o papel de tal diálogo em certas partes da liturgia – que tem o seu lugar – mas de ressaltar que o princípio que rege esse intercâmbio é o diálogo entre todo o povo reunido, incluindo o sacerdote, com Deus. O liturgista francês Marcel Metzger chegou, inclusive, a dizer que a celebração da Missa “versus populum” não exprime a verdadeira forma da Igreja e do ofício litúrgico. O sacerdote não celebra a Eucaristia para o povo, mas é toda a comunidade que celebra voltada para Deus Pai, por Jesus Cristo, no Espírito Santo. Este diálogo entre Deus e seu povo é valorizado de maneira notável quando o celebrante está voltado para a abside.
  Uma vez que os homens estão relacionados com o espaço e o tempo, suas orações e louvores a Deus se realizam em locais concretos e momentos específicos e "se encarnam", em certo sentido. Para Metzger, a orientação comum na oração é a maior expressão desta representação espacial de Deus [7]. O que é importante aqui não é a orientação para um determinado lugar do céu, mas a explicação sensível da verdadeira forma da Igreja através da orientação comum do sacerdote e dos fiéis em direção Àquele a quem dirigem suas orações. Em resposta à banalização e à dessacralização progressiva da vida litúrgica, todo esforço deve ser empreendido para que se dê prioridade absoluta à contemplação e à adoração do Senhor. Os sacerdotes são servidores humildes e discretos deste mistério - nem mais, nem menos.
  A orientação comum da oração na liturgia foi de uso quase universal nas igrejas latinas até muito recentemente. Ela continua a ser a regra nas Igrejas de tradição bizantina, siríaca, armênia, copta e etíope. A tradição litúrgica e a prática atual de todas as igrejas orientais não católicas e da maioria das igrejas orientais católicas conhecem a orientação comum do sacerdote e da assembléia, pelo menos durante a anáfora. O fato de se ter introduzido em algumas igrejas orientais católicas, sobretudo nas da diáspora, a celebração de frente para o povo, deve-se às influências ocidentais do período pós-conciliar. Isto representa para estas igrejas um distanciamento de sua própria tradição, o que ocorre, por exemplo, entre os maronitas e os siro-malabares. Há alguns anos, a congregação romana responsável por este tema ressaltou de maneira muito clara que a celebração da liturgia versus orientem é uma tradição viva, cheia de significado e que foi transmitida desde os tempos mais antigos, bem assim que é importante conservá-la [8].
  A orientação comum de frente para Deus, que implica que todos estejam voltados para o altar – quer a orientação para o leste seja real ou não - é a posição mais adequada para celebrar a Eucaristia em sentido estrito, especialmente, durante o Cânon. Somente durante as partes da liturgia em forma de diálogo, durante a proclamação da Palavra e a distribuição da comunhão, é que o sacerdote deveria voltar-se para o povo. Não se trata de discutir aqui em detalhe como essa proposta poderia ser colocada em prática de maneira concreta. No entanto, permanece a recomendação: o sacerdote deve orar voltado para o altar, especialmente nas igrejas antigas onde um altar principal, cuja importante qualidade estética, muitas vezes, é a característica dominante de todo o espaço. Os suntuosos altares que se encontram nas igrejas ocidentais da idade média e do barroco, bem assim as estruturas absidais do primeiro século ainda preservadas nas igrejas bizantinas e orientais, contribuem para honrar a Deus e fazê-lo presente de modo sacramental, aos olhos dos cristãos reunidos para a oração e para o sacrifício da Missa, a obra da redenção por Ele realizada. Isso porque o altar é, por assim dizer, uma abertura no céu que, longe de fechar o espaço da igreja, permite a entrada, na comunidade reunida, daquele que é o Oriente e, por sua vez, permite a saída desta comunidade da prisão que é este mundo [9].
Notas:

1. J. Ratzinger, « Der Katholizismus nach dem Konzil », Auf dein Wort hin. 81. Deutscher Katholikentag vom 13. Juli bis 17. Juli 1966 in Bamberg, Verlag Bonifacius-Druckerei, Paderborn, 1966, pp. 245-264 ; J. A. Jungmann, « Der neue Altar », Der Seelsorger, n. 37, 1967, pp. 374-381 ; L. Bouyer, Liturgy and Architecture, Notre-Dame, Indiana, 1967, trad. française : Architecture et liturgie, Cerf, coll. « foi vivante », 1991.
2. L’Esprit de la liturgie, « Participation active », Ad Solem, Genève, 2001, p. 139.
3. J. Ratzinger, Das Fest des Glaubens. Versuche zur Theologie des Gottesdienstes, Johannes Verlag, Einsiedeln, 1993, pp. 121-123.
4. Sur ce sujet, on peut se référer aux travaux du liturgiste de Ratisbonne Klaus Gamber, même s’il ne sont pas toujours fiables quant aux détails historiques. K. Gamber, Ritus modernus. Gesammelte Aufsätze zur Liturgiereform, Pustet, Ratisbonne, 1972 ; Liturgie und Kirchenbau. Studien zur Geschichte der Meßfeier und des Gotteshauses in der Frühzeit, Pustet, Ratisbonne, 1976.
5. Concile de Trente, 22e session, « exposition de la doctrine touchant le Sacrifice de la messe », chapitre 1.
6. L. Bouyer, postface à Klaus Gamber, Zum Herrn hin ! Fragen um Kirchenbau und Gebet nach Osten, Pustet, Ratisbonne, 1994, p. 74.
7. M. Metzger, « La place des liturges à l’autel », Revue des sciences religieuses, n. 45, 1971, p. 140.
8. Congregatio pro Ecclesiis Orientalibus, Istruzione per l’applicazione delle prescrizioni liturgiche del Codice dei Canoni delle Chiese Orientali « Il Padre incomprensibile », Cité du Vatican, 1996, pp. 85-86 (n. 107).
9. L’Esprit de la liturgie, « Le lieu sacré », pp. 59-60.

Sobre o autor: Pe. Uwe Michael Lang. Sacerdote do Oratório de São Filipe Néri, autor do livro Turning towards the Lord: orientation in liturgical prayer (2005) e Oficial da Congregação para o Culto Divino e a Disciplina dos Sacramentos e Consultor do Ofício de Celebrações Litúrgicas do Sumo Pontífice. Fonte: Revista Catholica n º 89 – Publicado em 11 de fevereiro de 2010.



Tradução por Edilberto Alves

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