domingo, 11 de setembro de 2011

Homilia do 24° Domingo do Tempo Comum


  “Quantas vezes devo perdoar se meu irmão pecar contra mim?” (Mt 18,21). À pergunta de Pedro, Jesus responde estendendo a já generosa concessão do apóstolo, até o infinito horizonte divino da medida sem medida. “Até sete vezes?.... Não te digo até sete vezes, mas até setenta vezes sete” (18,22). Na linguagem bíblica, estes números têm significado simbólico: indicam plenitude, totalidade. Jesus os multiplica por si mesmos, acentuando o paradoxo. Ele sugere que a medida autêntica da misericórdia e do perdão recíproco não se encontra no homem. Sua nascente é divina, está no próprio Pai, por isso não aguenta cálculos e medidas estabelecidas segundo razoáveis critérios humanos de proporção entre culpa, arrependimento e perdão.
 
  O céu do Pai inicia na terra dos homens, quando eles se reconhecem e se sustentam como irmãos, na fragilidade do pecado assim como no perdão recebido por Deus e partilhado. Jesus abre o caminho com seu constante compromisso de solidariedade e de misericórdia para com os marginalizados, os pobres, os pecadores, os adversários hostis que procuram sua morte.
  A parábola que apresenta a estranha maneira de acertar as contas do patrão com seus empregados se faz carne na vida e na morte de Jesus. Na cruz, Jesus invoca: “Pai, perdoa-lhes: não sabem o que fazem” (Lc 23,34).
  Para os discípulos, tal perspectiva é extraordinário dom de graça, potencialidade a desenvolver, chamado desafiador a seguir, tendo os olhos fixos em Jesus, que revelou o coração do Pai, e sustentados pelo exemplo de tantas testemunhas do passado e do presente, que os precederam  no seguimento do mestre divino.
  Se amais os que vos amam, que graça alcançais?.... Muito pelo contrário, amai vossos inimigos, fazei o bem e emprestai sem esperar coisa alguma em troca. Será grande a vossa recompensa, e sereis filhos do Altíssimo, pois ele é bom para com os ingratos e com os maus. Sede misericordiosos como o vosso Pai é misericordioso”  (Lc 6, 32. 35-36).
  O exemplo de Jesus se torna ensino dado com autoridade e palavra eficaz. Dele nasce uma nova geração de homens e mulheres que vivem na própria carne a qualidade de vida, própria de Deus, tornando-se “seus filhos e filhas”, segundo a sublime palavra de Jesus. A gratuidade do amor até o perdão e o amor aos inimigos são atitudes e gestos divinos. “O amor, diz São Bernardo, basta a si mesmo... É para seu mérito, seu próprio prêmio. Além de si mesmo, amor não exige motivo nem fruto. Seu fruto é o próprio ato de amar. Amo porque amo, amo para amar”. (Dos Sermões sobre o Cântico dos Cânticos, 83,4; LH IV; na festa de São Bernardo)
  Através dos gestos de misericórdia e de perdão dos discípulos de Jesus, manifesta-se a incomensurável misericórdia do Pai, e se atua o reino de Deus na terra.
  O amor radical de Deus para com o homem se transforma no amor radical do homem para com seu próximo. O agir humano se transforma no agir divino. A pessoa, renovada em Cristo, torna-se tanto mais rica em humanidade quanto mais divinamente orientada.
  A comunidade para a qual Mateus escreve seu evangelho, com o fim de iluminar-lhe a vida, é a mesma que tinha nascido pela potência do Espírito no dia de Pentecostes em Jerusalém, e que tinha levantado a admiração de todo o povo pela união profunda entre seus membros, embora provindos de nações, línguas, culturas e experiências tão diferentes. Esta comunhão profunda entre os irmãos se tornou motivo de louvor ao Senhor e de atração de novos irmãos, enquanto “o Senhor acrescentava cada dia ao seu número os que seriam salvos” (At 2, 46-47).
  Com o decorrer do tempo e o ampliar-se do número dos novos discípulos, as relações entre os irmãos de origem judia e os de origem pagã se tornam complicadas ao nível pessoal, (cf At 6,1: queixas dos gregos e instituição dos 7 diáconos), assim como na interpretação da missão e do ensino de Jesus, o Messias de Deus e o Salvador (cf At 10-11: missão privilegiada de Israel e extensão do chamado aos pagãos).
  Os Atos dos Apóstolos testemunham abundantemente os desafios e o difícil caminho que a jovem comunidade cristã é chamada a enfrentar, sob o discernimento do Espírito, sob a colaboração dos irmãos, e a direção dos apóstolos. Eles mesmos – como atestam as experiências de Pedro, de Paulo e de Tiago, testemunhadas pelos Atos dos Apóstolos e pelas Cartas de Paulo – foram submetidos pelo Senhor a repetidas passagens de conversão interior e de mudanças de estilo nas relações recíprocas.
  A comunidade experimenta a fragilidade da fé: dúvidas sobre a fidelidade à Lei de Moisés e a passagem à pessoa de Jesus, o cumprimento da Lei, as faltas relativas à caridade, o peso dos prejulgamentos, a pretensão de possuir em exclusividade os dons do Espírito.
  Existe amplo espaço para tensões, faltas, misericórdia e... perdão recíproco! 
Como reagir? Mateus indica o caminho, propondo a parábola de Jesus. A generosa acolhida do irmão que falha, acompanhada pelo perdão recíproco, é condição essencial para viver o perdão do Pai, que é a substância da boa nova anunciada por Jesus, e por ele entregue como fundamento do novo povo de Deus. Deixar-se guiar por esta atitude generosa do Pai faz da comunidade dos discípulos a casa de Deus na terra.
  O contraste entre a enorme dívida perdoada ao empregado por parte do patrão, movido por compaixão, e, por outro lado, a incapacidade do empregado beneficiado, de quitar a pequena soma devida a ele por seu companheiro, destaca a absoluta gratuidade do perdão do Pai, e como o perdão recíproco constitui uma real participação ao estilo do Pai por parte da comunidade. A comunidade cristã se configura como comunidade de perdoados, que o Espírito do Ressuscitado (cf Jo 20, 22-23) faz capazes de se perdoar reciprocamente, preanunciando assim profeticamente a reconciliação definitiva de todos na casa do Pai.
  A oração entregue por Jesus aos discípulos é muito mais do que uma extraordinária fórmula de oração brotada do coração do Filho bem amado. Ela exprime a profunda identidade da comunidade cristã, que vive a boa nova do perdão do Pai, invocado, recebido e partilhado. “Pai nosso, que estás no céu, santificado seja o teu nome.... E perdoa-nos as nossas dívidas como também nós perdoamos aos nossos devedores” (Mt 6, 9.12).
  Através da experiência do perdão e da reconciliação, cada dia a comunidade está aprendendo que “nisto consiste o amor: não fomos nós que amamos a Deus, mas foi ele que nos amou e enviou-nos seu filho como vítima de expiação pelos nossos pecados. Amados, se Deus assim nos amou, devemos, nós também, amar-nos uns aos outros ” (1 Jo 4,  10-11; cf Rm 5, 8-12).
A Igreja, que “é em Cristo como que o sacramento ou sinal e instrumento da íntima união com Deus e da unidade de todo o gênero humano” (Constituição Lumen Gentium n.1), celebra a si mesma no Sacramento da Penitência e reconciliação.
  A mesma Igreja está bem consciente que assumir e fazer próprio o estupefativo comportamento divino é fruto do nosso mergulhar no mistério pascal de Cristo e não do nosso esforço de autodesenvolvimento moral. É a graça que junto com ela pedimos como presente da eucaristia de hoje: “Ó Deus, que a ação da vossa eucaristia penetre todo o nosso ser, para que não sejamos movidos por nossos impulsos, mas pela graça do vosso sacramento” (Oração depois da comunhão).
  De fato, os impulsos nos empurram para outra direção. Para a direção que aparentemente parece satisfazer a sede de se afirmar e dominar o outro, quando na realidade nos prende dentro de um processo sem fim de autodestruição e de morte. “Se ele que é um mortal, guarda rancor, quem é que vai alcançar perdão para os seus pecados? Lembra-te do teu fim e deixa de odiar; pensa na destruição e na morte e persevera nos mandamentos” (Eclo 28, 5-6). Ao contrário, o perdão concedido ao irmão que nos ofende abre ao perdão de Deus: “Perdoa a injustiça cometida por teu próximo: assim, quando orares, teus pecados serão perdoados” (Eclo 28, 2).
  Se a nossa vida está de verdade orientada para o Senhor, nada nos separa dele, quaisquer que sejam os acontecimentos da vida. Mesmo na morte, ficamos em relação com o Senhor da vida. A partir desta relação profunda com o Senhor, reencontramos plenamente os irmãos (2 Leitura – Rm  14, 7-9).
  Dois chefes leigos de estado, o da Itália e o da Croácia, nações que no passado se combateram duramente em sangrentas guerras e vinganças, há poucos dias (4 de setembro 2011), falando em nome dos respectivos povos, traduziram em termos políticos de alto valor, o ensino de Jesus. Depois de ter reconhecido cada um as culpas da própria nação, proclamaram: “Agora nos perdoamos reciprocamente o mal que fizemos uns aos outros”.
  Com o apóstolo Paulo, poderíamos afirmar que esta maneira de relacionar-nos, imitando o estilo de Deus, é o verdadeiro culto no Espírito ao Senhor, pois nela se manifesta a maneira nova de pensar, de julgar e de agir, que leva consigo a conformação a Cristo (cf Rm 12, 1-2).
  De fato esta é a atitude que pede o próprio Jesus: “Portanto, se estiveres para trazer tua oferta ao altar e ali te lembrares de que o teu irmão tem alguma coisa contra ti, deixa a tua oferta ali diante do altar e vai primeiro reconciliar-te com teu irmão; e depois virás apresentar tua oferta” (Mt 5, 24).
  A reforma litúrgica promovida pelo Concílio e aprovada pelo Papa Paulo VI tem introduzido como parte integrante da celebração eucarística o gesto de nos saudarmos uns aos outros como um sinal de reconciliação e de paz, antes de aproximar-se ao altar para receber a santa comunhão. É um gesto exigente e profético na sua simplicidade. É importante que seja cumprido com participação interior e devoção, como se convém aos irmãos e irmãs que se aproximam à mesa do Senhor.
Com o magnífico Salmo responsorial (Sl 102,1-12), contemplamos o coração de Deus, tão promissório pela bondade, a fidelidade e o amor que continua nos acompanhando no nosso caminho, assim como guiou nossos pais. A complicada história da aliança o testemunha. “Bendize, ó minha alma ao senhor, e todo meu ser seu santo nome... Pois ele te perdoa toda culpa e cura toda tua enfermidade... Não fica sempre repetindo as suas queixas, nem guarda eternamente seu rancor... Quanto os céus por sobre a terra se elevam, tanto é grande o seu amor aos que o temem...” (Sl 102, 1-4; 9-12). Desta magnífica história, por sua graça, somos hoje os protagonistas, junto com o Senhor. Deste salmo de louvor, os novos compositores.
  Movida por esta consciência, cheia de maravilha e de gratidão, a Igreja, com a reforma litúrgica depois do Concílio, tem elaborado pela primeira vez na história da liturgia duas Orações Eucarísticas (a 7a e a 8a do Missal Romano), nas quais o tema-guia do louvor e do agradecimento ao Pai é o dom da reconciliação e do perdão em Cristo e entre os irmãos. Os dois textos litúrgicos merecem profunda atenção, sendo uma rica fonte de oração e de catequese.
  Transformando o evangelho de hoje em oração cheia de esperança, o prefácio da Oração VIII canta: “No meio da humanidade, dividida em contínua discórdia, sabemos por experiência  que sempre levais as pessoas a procurar a reconciliação. Vosso Espírito Santo move os corações, de modo que os inimigos voltem à amizade, os adversários se dêem a mão e os povos procurem reencontrar a paz”.
  Temos a percepção que as perspectivas a nós oferecidas pela palavra do Senhor nos superem demais? Possa nos sustentar a sábia palavra de um homem de Deus, rico da sua experiência: “Guarda pois, a palavra de Deus, porque são felizes os que a guardam; guarda-a de tal modo que ela entre no mais íntimo de tua alma e penetre em todos os teus sentimentos e costumes. Alimenta-te deste bem, e tua alma se deleitará na fartura... Se assim guardares a palavra de Deus, certamente ela te guardará” (São Bernardo, Sermão 5,3, sobre o Advento do Senhor; LH I, I semana do Advento, quarta-feira).

Dom Emanuele Bargellini, Prior do Mosteiro da Transfiguração

Nenhum comentário:

Postar um comentário

Obrigado por comentar nossos artigos, homilias ou fotos. Que seja para a glória de Deus! Não responderemos a anônimos sem registro neste blog.