“Quantas
vezes devo perdoar se meu irmão pecar contra mim?” (Mt 18,21). À
pergunta de Pedro, Jesus responde estendendo a já generosa concessão do
apóstolo, até o infinito horizonte divino da medida sem medida. “Até sete
vezes?.... Não te digo até sete vezes, mas até setenta vezes sete” (18,22).
Na linguagem bíblica, estes números têm significado simbólico: indicam
plenitude, totalidade. Jesus os multiplica por si mesmos, acentuando o
paradoxo. Ele sugere que a medida autêntica da misericórdia e do perdão
recíproco não se encontra no homem. Sua nascente é divina, está no próprio Pai,
por isso não aguenta cálculos e medidas estabelecidas segundo razoáveis
critérios humanos de proporção entre culpa, arrependimento e perdão.
O céu do Pai inicia na terra dos homens,
quando eles se reconhecem e se sustentam como irmãos, na fragilidade do pecado
assim como no perdão recebido por Deus e partilhado. Jesus abre o caminho com
seu constante compromisso de solidariedade e de misericórdia para com os
marginalizados, os pobres, os pecadores, os adversários hostis que procuram sua
morte.
A parábola que apresenta a estranha maneira
de acertar as contas do patrão com seus empregados se faz carne na vida e na
morte de Jesus. Na cruz, Jesus invoca: “Pai, perdoa-lhes: não sabem o que
fazem” (Lc 23,34).
Para os discípulos, tal perspectiva é
extraordinário dom de graça, potencialidade a desenvolver, chamado desafiador a
seguir, tendo os olhos fixos em Jesus, que revelou o coração do Pai, e sustentados
pelo exemplo de tantas testemunhas do passado e do presente, que os
precederam no seguimento do mestre divino.
“Se amais os que vos amam, que graça
alcançais?.... Muito pelo contrário, amai vossos inimigos, fazei o bem e
emprestai sem esperar coisa alguma em troca. Será grande a vossa recompensa, e
sereis filhos do Altíssimo, pois ele é bom para com os ingratos e com os maus.
Sede misericordiosos como o vosso Pai é misericordioso” (Lc 6, 32.
35-36).
O exemplo de Jesus se torna ensino dado com
autoridade e palavra eficaz. Dele nasce uma nova geração de homens e mulheres
que vivem na própria carne a qualidade de vida, própria de Deus, tornando-se
“seus filhos e filhas”, segundo a sublime palavra de Jesus. A gratuidade do
amor até o perdão e o amor aos inimigos são atitudes e gestos divinos. “O
amor, diz São Bernardo, basta a si mesmo... É para seu mérito, seu próprio
prêmio. Além de si mesmo, amor não exige motivo nem fruto. Seu fruto é o
próprio ato de amar. Amo porque amo, amo para amar”. (Dos Sermões
sobre o Cântico dos Cânticos, 83,4; LH IV; na festa de São Bernardo)
Através dos gestos de misericórdia e de
perdão dos discípulos de Jesus, manifesta-se a incomensurável misericórdia do
Pai, e se atua o reino de Deus na terra.
O amor radical de Deus para com o homem se
transforma no amor radical do homem para com seu próximo. O agir humano se
transforma no agir divino. A pessoa, renovada em Cristo, torna-se tanto mais
rica em humanidade quanto mais divinamente orientada.
A comunidade para a qual Mateus escreve seu
evangelho, com o fim de iluminar-lhe a vida, é a mesma que tinha nascido pela
potência do Espírito no dia de Pentecostes em Jerusalém, e que tinha levantado
a admiração de todo o povo pela união profunda entre seus membros, embora
provindos de nações, línguas, culturas e experiências tão diferentes. Esta
comunhão profunda entre os irmãos se tornou motivo de louvor ao Senhor e de
atração de novos irmãos, enquanto “o Senhor acrescentava cada dia ao seu
número os que seriam salvos” (At 2, 46-47).
Com o decorrer do tempo e o ampliar-se do
número dos novos discípulos, as relações entre os irmãos de origem judia e os
de origem pagã se tornam complicadas ao nível pessoal, (cf At 6,1: queixas dos
gregos e instituição dos 7 diáconos), assim como na interpretação da missão e
do ensino de Jesus, o Messias de Deus e o Salvador (cf At 10-11: missão
privilegiada de Israel e extensão do chamado aos pagãos).
Os Atos dos Apóstolos testemunham
abundantemente os desafios e o difícil caminho que a jovem comunidade cristã é
chamada a enfrentar, sob o discernimento do Espírito, sob a colaboração dos
irmãos, e a direção dos apóstolos. Eles mesmos – como atestam as experiências
de Pedro, de Paulo e de Tiago, testemunhadas pelos Atos dos Apóstolos e pelas
Cartas de Paulo – foram submetidos pelo Senhor a repetidas passagens de
conversão interior e de mudanças de estilo nas relações recíprocas.
A comunidade experimenta a fragilidade da fé:
dúvidas sobre a fidelidade à Lei de Moisés e a passagem à pessoa de Jesus, o
cumprimento da Lei, as faltas relativas à caridade, o peso dos prejulgamentos,
a pretensão de possuir em exclusividade os dons do Espírito.
Existe amplo espaço para tensões, faltas,
misericórdia e... perdão recíproco!
Como
reagir? Mateus indica o caminho, propondo a parábola de Jesus. A generosa
acolhida do irmão que falha, acompanhada pelo perdão recíproco, é condição
essencial para viver o perdão do Pai, que é a substância da boa nova anunciada
por Jesus, e por ele entregue como fundamento do novo povo de Deus. Deixar-se
guiar por esta atitude generosa do Pai faz da comunidade dos discípulos a casa
de Deus na terra.
O contraste entre a enorme dívida perdoada ao
empregado por parte do patrão, movido por compaixão, e, por outro lado, a
incapacidade do empregado beneficiado, de quitar a pequena soma devida a ele
por seu companheiro, destaca a absoluta gratuidade do perdão do Pai, e como o
perdão recíproco constitui uma real participação ao estilo do Pai por parte da
comunidade. A comunidade cristã se configura como comunidade de perdoados, que
o Espírito do Ressuscitado (cf Jo 20, 22-23) faz capazes de se perdoar
reciprocamente, preanunciando assim profeticamente a reconciliação definitiva
de todos na casa do Pai.
A oração entregue por Jesus aos discípulos é
muito mais do que uma extraordinária fórmula de oração brotada do coração do
Filho bem amado. Ela exprime a profunda identidade da comunidade cristã, que
vive a boa nova do perdão do Pai, invocado, recebido e partilhado. “Pai
nosso, que estás no céu, santificado seja o teu nome.... E perdoa-nos as nossas
dívidas como também nós perdoamos aos nossos devedores” (Mt 6, 9.12).
Através da experiência do perdão e da
reconciliação, cada dia a comunidade está aprendendo que “nisto consiste o
amor: não fomos nós que amamos a Deus, mas foi ele que nos amou e enviou-nos
seu filho como vítima de expiação pelos nossos pecados. Amados, se Deus assim
nos amou, devemos, nós também, amar-nos uns aos outros ” (1 Jo
4, 10-11; cf Rm 5, 8-12).
A Igreja,
que “é em Cristo como que o sacramento ou sinal e instrumento da íntima
união com Deus e da unidade de todo o gênero humano” (Constituição Lumen
Gentium n.1), celebra a si mesma no Sacramento da Penitência e
reconciliação.
A mesma Igreja está bem consciente que
assumir e fazer próprio o estupefativo comportamento divino é fruto do nosso
mergulhar no mistério pascal de Cristo e não do nosso esforço de
autodesenvolvimento moral. É a graça que junto com ela pedimos como presente da
eucaristia de hoje: “Ó Deus, que a ação da vossa eucaristia penetre todo o
nosso ser, para que não sejamos movidos por nossos impulsos, mas pela graça do
vosso sacramento” (Oração depois da comunhão).
De fato, os impulsos nos empurram para outra
direção. Para a direção que aparentemente parece satisfazer a sede de se
afirmar e dominar o outro, quando na realidade nos prende dentro de um processo
sem fim de autodestruição e de morte. “Se ele que é um mortal, guarda
rancor, quem é que vai alcançar perdão para os seus pecados? Lembra-te do teu
fim e deixa de odiar; pensa na destruição e na morte e persevera nos
mandamentos” (Eclo 28, 5-6). Ao contrário, o perdão concedido ao irmão que
nos ofende abre ao perdão de Deus: “Perdoa a injustiça cometida por teu
próximo: assim, quando orares, teus pecados serão perdoados” (Eclo 28, 2).
Se a nossa vida está de verdade orientada
para o Senhor, nada nos separa dele, quaisquer que sejam os acontecimentos da
vida. Mesmo na morte, ficamos em relação com o Senhor da vida. A partir desta
relação profunda com o Senhor, reencontramos plenamente os irmãos (2 Leitura –
Rm 14, 7-9).
Dois chefes leigos de estado, o da Itália e o
da Croácia, nações que no passado se combateram duramente em sangrentas guerras
e vinganças, há poucos dias (4 de setembro 2011), falando em nome dos
respectivos povos, traduziram em termos políticos de alto valor, o ensino de
Jesus. Depois de ter reconhecido cada um as culpas da própria nação,
proclamaram: “Agora nos perdoamos reciprocamente o mal que fizemos uns aos
outros”.
Com o apóstolo Paulo, poderíamos afirmar que
esta maneira de relacionar-nos, imitando o estilo de Deus, é o verdadeiro culto
no Espírito ao Senhor, pois nela se manifesta a maneira nova de pensar, de
julgar e de agir, que leva consigo a conformação a Cristo (cf Rm 12, 1-2).
De fato esta é a atitude que pede o próprio
Jesus: “Portanto, se estiveres para trazer tua oferta ao altar e ali te
lembrares de que o teu irmão tem alguma coisa contra ti, deixa a tua oferta ali
diante do altar e vai primeiro reconciliar-te com teu irmão; e depois virás
apresentar tua oferta” (Mt 5, 24).
A reforma litúrgica promovida pelo Concílio e
aprovada pelo Papa Paulo VI tem introduzido como parte integrante da celebração
eucarística o gesto de nos saudarmos uns aos outros como um sinal de reconciliação
e de paz, antes de aproximar-se ao altar para receber a santa comunhão. É um
gesto exigente e profético na sua simplicidade. É importante que seja cumprido
com participação interior e devoção, como se convém aos irmãos e irmãs que se
aproximam à mesa do Senhor.
Com o
magnífico Salmo responsorial (Sl 102,1-12), contemplamos o coração
de Deus, tão promissório pela bondade, a fidelidade e o amor que continua nos
acompanhando no nosso caminho, assim como guiou nossos pais. A complicada
história da aliança o testemunha. “Bendize, ó minha alma ao senhor, e todo
meu ser seu santo nome... Pois ele te perdoa toda culpa e cura toda tua
enfermidade... Não fica sempre repetindo as suas queixas, nem guarda
eternamente seu rancor... Quanto os céus por sobre a terra se elevam, tanto é
grande o seu amor aos que o temem...” (Sl 102, 1-4; 9-12). Desta
magnífica história, por sua graça, somos hoje os protagonistas, junto com o
Senhor. Deste salmo de louvor, os novos compositores.
Movida por esta consciência, cheia de
maravilha e de gratidão, a Igreja, com a reforma litúrgica depois do Concílio,
tem elaborado pela primeira vez na história da liturgia duas Orações
Eucarísticas (a 7a e a 8a do Missal Romano), nas quais o tema-guia do
louvor e do agradecimento ao Pai é o dom da reconciliação e do perdão em
Cristo e entre os irmãos. Os dois textos litúrgicos merecem profunda atenção,
sendo uma rica fonte de oração e de catequese.
Transformando o evangelho de hoje em oração
cheia de esperança, o prefácio da Oração VIII canta: “No meio da humanidade,
dividida em contínua discórdia, sabemos por experiência que sempre levais
as pessoas a procurar a reconciliação. Vosso Espírito Santo move os corações,
de modo que os inimigos voltem à amizade, os adversários se dêem a mão e os
povos procurem reencontrar a paz”.
Temos a percepção que as perspectivas a nós
oferecidas pela palavra do Senhor nos superem demais? Possa nos sustentar a
sábia palavra de um homem de Deus, rico da sua experiência: “Guarda pois, a
palavra de Deus, porque são felizes os que a guardam; guarda-a de tal modo que
ela entre no mais íntimo de tua alma e penetre em todos os teus sentimentos e
costumes. Alimenta-te deste bem, e tua alma se deleitará na fartura... Se assim
guardares a palavra de Deus, certamente ela te guardará” (São Bernardo, Sermão
5,3, sobre o Advento do Senhor; LH I, I semana do Advento, quarta-feira).
Dom
Emanuele Bargellini, Prior do Mosteiro da Transfiguração
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