O aspecto do mistério da salvação que celebramos hoje não é muito diferente do que celebramos há uns dez dias atrás, o domingo da Trindade. "Deus é amor", repete São João, como um refrão, na segunda leitura da missa de hoje. Estas três palavras resumem todo o mistério da união do Pai a seu Filho no seu Espírito comum. Resumem também todo o mistério das relações entre Deus e a humanidade.
Já no Antigo Testamento, o povo hebreu havia percebido como era amado de modo particular por Deus e permanecia fascinado pela gratuidade deste amor, em primeiro lugar, e em seguida, pela fidelidade de Deus a este amor a despeito de todas as infidelidades de seu povo.
São João era fascinado pelo fato de que Deus nos amou primeiro e nos manifestou seu amor enviando-nos seu Filho único a fim de que por ele, tivéssemos a vida em plenitude. Mas isto não lhe era suficiente. Ele tira também daí as conseqüências para nossa vida de todos os dias, utilizando uma lógica muito simples e sem erro: já que Deus nos amou, devemos não somente amá-lo, mas também amar-nos uns aos outros. E, sempre na mesma lógica, continua: Deus é amor, aquele que PERMANECE no amor, isto é, aquele que PERSISTE no amor, que RESIDE no amor, que é FIEL como o próprio Deus é fiel, esta pessoa permanece em Deus e Deus permanece nela. Esta pessoa é introduzida pelo amor no próprio mistério da vida da Trindade.
Quem quer que ame verdadeiramente sabe que o amor é exigente.
O Livro do Deuteronômio enuncia pela boca de Moisés a importância de guardar as ordens, os mandamentos e os decretos prescritos por Deus ou em nome de Deus, uma vez que esta obediência é percebida como um expressão de amor e de fidelidade. Jesus, no Evangelho, não é menos exigente. É para aqueles que desejam andar em seu seguimento, isto é, tornar-se seus discípulos e viver segundo seu ensinamento, que ele revela os segredos do Pai que permanecem ocultos aos sábios e entendidos. Ele próprio se apresenta como doce e humilde de coração.
O coração é concebido em todas as culturas como o lugar onde residem os sentimentos, a afetividade, o amor. Eis porque, a partir já da Idade Média, místicos como Gertrudes, Catarina de Siena, Matilde, Margarida Alacoque, João Eudes, desenvolvem uma devoção ao Sagrado Coração de Jesus, que não é uma devoção a um órgão físico, mas ao amor divino vivido pelo Deus feito homem. Se esta devoção pôde conhecer em certas épocas expressões talvez mais românticas e sentimentais, como dão testemunho uma vasta coleção de imagens piedosas de gosto duvidoso, esta devoção é essencialmente, na sua intuição primeira, a contemplação do amor de Deus para nós encarnado em Jesus de Nazaré.
Uma vez que ele tanto nos amou, amemo-nos pois uns aos outros com o mesmo amor exigente, prontos a ir até o dom de nós mesmos e ao dom de nossa vida.
Um coração enamorado
Um Pastorinho, só, está penando
Privado de prazer e de contento
Posto na pastorinha o pensamento
Seu peito de amor ferido, pranteando.
Privado de prazer e de contento
Posto na pastorinha o pensamento
Seu peito de amor ferido, pranteando.
Não chora por tê-lo o amor chagado
Que não lhe dói o ver-se assim dorido,
Embora o coração esteja ferido,
Mas chora por pensar que é olvidado
Que não lhe dói o ver-se assim dorido,
Embora o coração esteja ferido,
Mas chora por pensar que é olvidado
Estas estrofes do poema Um Pastorinho de São João da Cruz mostram-nos um Jesus enamorado da Humanidade e, ao mesmo tempo, o seu sofrimento por não ser correspondido nesse amor.
Na verdade os homens nem sempre têm tomado consciência do amor infinito que Jesus lhes devota. Ao lermos os relatos evangélicos tomamos conhecimento de Jesus que ama os homens, especialmente. na pessoa dos pobres e dos humildes. Os milagres que nos são narrados são na sua maioria realizados nos mais pobres e nos mais desfavorecidos.
Mas se o amor pelos pobres de Jahvé é apanágio do Filho de Deus, uma outra faceta é-nos revelada nos evangelhos: Jesus tem um coração humano que se emociona perante a dor, como sucedeu quando o filho da viúva de Naim vai a enterrar, e é mesmo capaz de chorar diante do sepulcro do seu amigo Lázaro!
No entanto, ao longo dos séculos, os homens, e especialmente os cristãos, foram-se esquecendo do amor infinito de Deus que atinge o seu auge na Morte na Cruz, respondendo ao mesmo com ultrajes, indiferença e ingratidão.
Para incitar os homens a olharem para a humanidade de Cristo e reconhecerem o seu amor misericordioso a igreja instituiu na Sexta-feira depois do Corpo de Deus a Solenidade do Sagrado Coração de Jesus.
Tal festa surge na Igreja a pedido do mesmo Jesus que se revelou a Santa Margarida Maria Alacoque, no mosteiro da Visitação de Paray-le-Monial, onde lhe segredou na aparição de 27 de Dezembro de 1673: «O meu Coração está apaixonado pelos homens, e não pode conter por mais tempo as chamas que o inflamam.» Posteriormente, a 16 de Junho de 1675, desabafou: "Eis o meu Coração que tanto amou os homens e que a nada se poupou até se esgotar e se comunicar para lhes testemunhar todo o seu amor; em recompensa Eu não recebo da parte deles senão ingratidões, pelas irreverências e pela frieza e desprezo que têm por Mim neste sacramento de amor.»
Cristo continua a amar-nos, continua a sofrer com as nossas infidelidade e ultrajes e nesta Solenidade do Sagrado Coração de Jesus, que celebraremos no próximo dia 6 de Junho, Sexta-feira, gostaria de ouvir dos nossos lábios um sentido "Jesus, eu amo-Vos", para que o Pastorinho não continue penando.
Dom Armand Veilleux, OCSO, Abadia Notre Dame de Scourmont, Bélgica, 11.6.1999
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