A Quaresma chega devagar,
quase, imperceptível, no burburinho da agitação do momento. Quando menos
esperamos, nos encontramos no coração da Quaresma e no coração da Páscoa. E aí,
sim, mergulhados no coração do Mistério de Cristo – obediente em tudo ao Pai,
até a morte, e morte de cruz (Fl 2,8). O coração do Mistério de Cristo é a
obediência ao Pai. O coração da vida dos que o seguem é a obediência ao Filho.
Pobreza sem obediência não passa de carência; castidade sem obediência pode
tornar-se esterilidade. Sem a obediência, as duas as duas virtudes escorregam
para a vala comum do mero esforço social, incapaz de alcançar o patamar incomum
da mística cristã: a Vida em Deus para os irmãos. Nem sacrifícios nem ofertas
nem holocaustos, porém, um ouvido aberto. E o peito de quem ouve pronuncia uma
palavra: “Aqui estou para fazer a tua vontade!” (Sl 40) E nada mais é
preciso, porque tudo foi dado.
A Quaresma é a celebração da obediência do Filho,
a Páscoa é o canto de vitória do Pai. Tudo o que não é dado é perdido. O
Mistério do Filho foi sua doação total.
Essa é a razão de ser da Quaresma: aprofundar
nossa vida na Vida e no Mistério de Cristo – doação total de si – escondido no
Mistério de Deus – doação total em si. Escondido, sim, porque este é o jeito de
Deus se revelar: para se revelar, Deus se esconde. “Ele é a imagem do Deus
invisível” (Cl 1,15).“Ninguém jamais viu a Deus, quem nos revelou Deus foi
o Filho, o único que está junto do Pai” (Jo 1,18). Porém, o Deus que se
revela, se esconde; se esconde para se revelar. Esse é o grande paradoxo de
Deus: Ele não faz marketing pessoal.
Acompanhem-me com o evangelista Marcos.
Estaremos lendo Marcos durante todo o ano, nas leituras do Tempo Comum.
No Evangelho de Marcos, o Mistério de Jesus,
o Filho de Deus, é revelado desde o início. É o próprio Deus quem o apresenta
como Filho. Jesus acabou de sair das águas do Jordão, onde foi batizado,
rasgam-se os céus, e se ouve uma voz: “Tu és meu Filho amado. Em ti
encontro o meu agrado” (Mc 1,11). E eu pergunto: Quem ouviu? Ninguém. Não
havia ninguém, lá, naquela cena. A cena é grandiosa, mas não há espectadores.
Grandiosa demais, para ninguém ver! O Mistério de Deus cresce em Jesus, sim,
mas secretamente.
De novo, ouve-se a voz do Céu. Dessa vez,
Jesus se encontra no alto de uma montanha onde ele se transfigura. A cena,
novamente, é monumental: Nuvens e sombras se alternam. Marcos descreveu a
grandiosidade do momento, dizendo que as roupas do transfigurado ficaram “tão
brilhantes e brancas como nenhuma lavadeira do mundo conseguiria alvejar” (Mc
9,3). E quem viu? Quase ninguém. “Este é o meu Filho amado. Escutai-o” (Mc
9,7). Quem ouviu a voz? Apenas um círculo íntimo de três discípulos. É muita
revelação para tão poucos receptores. Ao descer do monte, Jesus os adverte a
não contarem a ninguém o que viram até que Ele “ressuscite dos mortos” (Mc
9,9). Só, então, eles poderiam captar o Seu mistério e confessá-lo.
Mas, aí, o que aconteceu naquele dia? Todos
fugiram. Apenas algumas mulheres assistiram, de longe. Apenas um centurião
romano pagão presenciou a cena. Coube a ele vendo Jesus expirar abandonado por
todos, proclamar: “Verdadeiramente, este era mesmo o Filho de Deus!” (Mc
15,39). O Mistério de Deus revelado em Cristo Jesus não tem para quem ser
revelado. É! Deus não faz marketing pessoal, mesmo!
No final, no clímax da História da Salvação,
quando um jovem vestido de branco anuncia às mulheres que o que elas buscam não
pode ser encontrado ali, no túmulo vazio, o que elas fizeram? “Saíram do
túmulo correndo, porque estavam com medo e assustadas. E não disseram nada a
ninguém, porque estavam com medo” (Mc 16,8). Tudo o que precisava ser dito
havia sido dito. Mas quem escutou? Quem escutará?
Essa é a grande razão da Quaresma:
preparar-nos para escutarmos o que o Pai nos revela em seu Filho Jesus. É para
isso que jejuamos, nos abstemos de prazeres comuns e perfeitamente viáveis,
seguramos com rédeas curtas os nossos desejos e compulsões, dispensamos da
nossa língua todo comentário desnecessário e infeliz. Para quê? Para nos
lavarmos de nós mesmos nas águas do batismo de Jesus onde a voz se ouviu. Para
revertermos as imagens mentirosas que cultivamos de nós mesmos no jeito pleno
de ser do Jesus transfigurado. Para nos desintoxicarmos de nossos egos inflados
e caminharmos com Ele os últimos seiscentos metros que separaram a casa de
Pilatos do monte da vergonha. E nem digo para estarmos na Sua cruz, mas, a Seu
lado, pelo menos, e sem abandoná-lO, como fizeram os primeiros. Não vamos
deixar a um centurião romano a última palavra e a glória de reconhecer, no
último dos últimos, o Filho de Deus: nossa vida, nosso caminho, nossa paz.
Mas, não é fácil! Para enxergar o Mistério de
Deus revelado em Cristo, precisamos ser curados. Precisamos daquilo que, em
latim, se chamava “salus” e que se traduz em duas palavras: salvação e saúde.
Precisamos da saúde de Deus, diferente da cura dos homens. Entre nós, a palavra
“cura” precisa ser escrita entre aspas. Curar é um verbo muito grandioso para
ser empregado entre os humanos. Quando muito, removemos sintomas. A cura,
mesmo, por inteiro, é assunto de outra ordem.
O que não significa que não devamos esticar
as mãos além do alcance dos braços para aliviar o sofrimento humano. A Campanha
da Fraternidade deste ano nos alerta para essa urgência. É uma urgência que os
doentes não sejam abandonados nas filas do serviço público de saúde. Trabalhar
no empenho por políticas públicas no campo da saúde, também, é reconhecer o
Mistério de Cristo escondido, lá, onde Ele esteve doente e foi visitado (Mt
25,36).
No entanto, com um olho vemos o que precisa
ser visto, com o outro alcançamos o que se esconde de nós. E o que se esconde
de nós? O Mistério de Cristo.
Há uma cena linda num filme chamado “O Manto
Sagrado” em que um tribuno romano descobre os cristãos, celebrando a ceia nas
catacumbas. Encontram-se ali pessoas de todo nível social e este tribuno não
entende como aquilo possa acontecer. Ouve falar de milagres, mas não vê nenhum.
Até que percebe uma jovem lindíssima cantando hinos, dirige-se até ela e vê que
ela é cega. Pergunta-lhe por que ela se encontra ali, naquele lugar, e ouve,
boquiaberto, a resposta: “Cristo me curou!” Mas curou de quê?, ele indaga. Ela
ainda é cega! “Curou minha alma”, ela responde. E olha para ele, como se o
visse, e lhe diz: “Ele pode curar a sua, também”.
Rezo para que, nesta Quaresma, todo nosso ser
por inteiro seja curado de todas as mazelas. E, sobretudo, para que nos
encontremos frente a frente com o Mistério de Cristo em nossas vidas. Ele,
nossa saúde e nossa salvação.
Em nome do Pai e do Filho e do Espírito
Santo. Amém.
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Dom José Francisco Rezende Dias
Arcebispo Metropolitano de Niterói
"A Quaresma é a celebração da obediência do Filho, a Páscoa é o canto de vitória do Pai."
ResponderExcluir#Perfeito!