Assumir-se peregrino é,
antes de mais, aceitar peregrinar ao próprio coração. Só a partir daí podemos
caminhar com outros como experiência de autêntica fraternidade. (...) Todos
nós, no decorrer da nossa história, em muitos momentos fomos feridos. Como resposta
defensiva a estas situações fomos encontrando, ainda que inconscientemente, os
nossos próprios mecanismos de proteção; estes permitiram-nos “sobreviver”, mas
a partir de uma ilusão, de uma não verdade no olhar sobre nós e sobre os
outros, transformando-se assi, e, obstáculo no acesso ao nosso eu profundo e,
como consequência, no acolhimento confiante e gratuito do outro. Estes
mecanismos de proteção são identificados, por exemplo, como medos, inseguranças
ou falsas seguranças, e, até mesmo, bloqueios.
Peregrinar ao coração – entrar no deserto – é
tantas vezes um processo doloroso, porque marcado pelo encontro com estes
“fantasmas” que nos habitam. No entanto, o afrontar esta realidade é condição
de acesso ao nosso eu profundo, “lugar” da nossa identidade de seres criados à
imagem e semelhança de Deus, “lugar” a partir do qual nos experimentamos em
harmonia com o Todo, e por isso, “lugar” onde nos sentimos livres. Só a partir
daqui é possível o encontro autêntico com o outro, é possível a escuta. (...)
O outro, particularmente aquele que nos
parece mais estranho, aquele que é mais diferente, é frequentemente o mais
revelador das nossas próprias sombras e, por isso, o mais decisivo do ponto de
vista do crescimento pessoal. As feridas que trazemos em nós, fazendo-nos sofrer,
a nós e àqueles que conosco se relacionam, contêm em si um potencial imenso de
vida quando, precisamente, a partir daí, nos abrimos à infinita ternura de
Deus.
A fragilidade, na experiência do encontro com
Jesus, é o lugar privilegiado da Graça. Zaqueu testemunha-o de forma muito
expressiva: «Senhor, vou dar metade dos meus bens aos pobres e, se defraudei
alguém em qualquer coisa, vou restituir-lhe quatro vezes mais» (Lucas 19, 8).
Quando entramos na nossa sombra e aí nos experimentamos amados tal como somos,
o nosso coração convertido pela misericórdia dilata-se para além de todas as
fronteiras.
Carlos Maria Antunes
Fonte: "Atravessar a
própria solidão", ed. Paulinas
Incrível como aquilo que mais nos incomoda no outro é um reflexo de algo que está dentro de nós, mas que ainda não descobrimos. Pra mim, isso é um mistério.
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