A Festa da Sagrada Família
tem as suas origens no fim do século XIX. A Igreja inquietava-se então com o
que considerava a decadência moral: o progresso do “naturalismo” devido aos
avanços da ciência, a penetração do ateísmo e a autonomia cada vez maior da política
e do direito em relação à Igreja. Certos Estados chegaram mesmo a aprovar
legislação que permitia o casamento civil. E viam-se cada vez mais casais
compostos por católicos e não católicos.
Por isso os papas tentaram valorizar a
comunidade familiar como instituição propriamente cristã, fundada sobre o
Evangelho. Assim, a 26 de Outubro de 1921, o Papa Bento XV instituiu um dia
consagrado especificamente à Sagrada Família.
A passagem evangélica para esta festa era a
mesma da data escolhida para a sua celebração (Domingo a seguir a Epifania):
Lucas 2, 41-52. O trecho bíblico situava-se na continuidade das leituras do
ciclo do Natal: depois da manifestação aos pastores e aos magos, o Menino
expressava-se aos sábios, em Jerusalém. No entanto, a introdução da festa fez
com que se desvanecesse a evocação da manifestação de Jesus no Templo de
Jerusalém, em detrimento da acentuação da sua família.
Com a reforma do calendário litúrgico
ocorrida após o Concílio Vaticano II, a Festa da Sagrada Família transitou para
o coração do Natal, no dia 30 de Novembro ou Domingo a seguir ao dia 25 de
Dezembro. Do ponto de vista pastoral, pode encontrar-se um certo interesse: o
Natal é uma festa intimamente ligada à vida familiar, pelo que a escolha da
data nada tem de incongruente, bem pelo contrário. Contudo, a perspectiva com
que a narrativa é abordada não lhe faz justiça. Lembremos que o texto
centra-se, antes de tudo, na revelação de Cristo como Filho de Deus, e não tanto
na sua família humana.
Ainda assim, é sempre possível refletir sobre
a família, sem perder de vista a questão da manifestação de Jesus. Com efeito,
é interessante sublinhar que o evangelista Lucas situa esta revelação no quadro
de uma cena muito simples. José, Maria e o Menino participam na peregrinação
anual, tal como hoje muitas pessoas saem de casa para visitar os familiares
durante o período das festas. Nada de extravagante como acontecimento: é quase
uma rotina. Mas o ambiente da festa litúrgica constitui, sem dúvida, uma
condição favorável ao despertar espiritual...
Se o contexto é relativamente modesto e, por
assim dizer, comum, o mesmo não se pode dizer da maneira como Jesus manifesta a
sua identidade profunda. Ele desaparece da vista dos seus parentes durante três
dias. Quando o reencontram, está a conversar com os sábios do Templo! Jesus acabava
de desorientar a vida tranquila da sua família: a narrativa refere que os seus
próximos “ficaram assombrados”.
Esta cena convida-nos a reconhecer que o
Senhor pode manifestar-se em todas as dimensões da nossa vida, inclusivamente
no meio familiar. E, por vezes, os efeitos da sua presença podem provocar
espanto ou incompreensão. Em nome da sua fé, uma pessoa poderá fazer escolhas
ou comprometer-se na sociedade de uma maneira que perturbe a célula familiar.
Como reagir numa situação semelhante? Lucas
propõe discretamente a figura de Maria: “Sua mãe guardava todas estas coisas no
seu coração”. Esta frase curta comporta um ensinamento de grande riqueza e de
duplo alcance.
Em primeiro lugar, a atitude de Maria está
marcada pela sabedoria. Ela ilustra a aceitação de que nem sempre se pode
compreender e controlar o que acontece na nossa vida, incluindo o que acontece
no nosso contexto mais imediato. Maria toma consciência de que há alguma coisa
no seu filho que lhe escapa. Não somente porque ele é Filho de Deus, mas também
porque é inteiramente um ser humano.
Por outro lado, Maria nunca procura
disfarçar, abafar ou desembaraçar-se destes acontecimentos. Pelo contrário,
dá-lhes um lugar privilegiado: “no seu coração”. O que acabou de suceder está
longe de ser uma ocorrência banal: o seu filho fugiu e respondeu aos parentes
em tom de censura. Não se trata de curar as feridas, mas de reconhecer que,
muitas vezes, é preciso um tempo de maturação para dar sentido a um
acontecimento.
Fonte: Secretariado Nacional
da Pastoral da Cultura de Portugal
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